O
nascimento e a morte do
sujeito moderno.
Por Michel
Aires de Souza
O problema da sujeito não é um velho problema do
pensamento filosófico ocidental. Este problema tem sua origem no mundo
moderno. Os antigos Gregos criaram uma extensa gama de
conhecimentos científicos, como também os grandes fundamentos do pensamento
filosófico e do pensamento político, contudo nunca pensaram o problema do
sujeito. Os Gregos estavam mais interessados em especular sobre os
problemas da natureza (physis) O que eles buscavam era uma
explicação racional e sistemática do universo. É através do estudo da origem e
movimento da vida natural que os primeiros filósofos criaram uma extensa gama
de conhecimentos científicos, como a física, a matemática, a astronomia e a
lógica, dando origem ao pensamento ocidental.
Se
a preocupação dos antigos era desvendar a origem e as transformações da
natureza, o grande problema da filosofia moderna ocidental era indagar sobre o
conhecimento. O colapso da ordem social, econômica e cultural medieval
possibilitaram ao homem moderno o interesse pelo conhecimento. O
valores como racionalismo, humanismo e antropocentrismo
tornaram-se essenciais para libertá-lo das amarras da ordem feudal e da
Igreja. A partir desses valores ele aprendeu inquirir, investigar e decifrar
sua própria realidade. O homem colocou-se a si próprio como centro
dos interesses e decisões de sua própria vida. Com o avanço do pensamento
e das ciências, ele passa a se interessar pelo modo como conhecemos
o mundo. Ele se afasta de metas transcendentes, deixando de se
preocupar com outro mundo e passa a se preocupar com esta vida, com este mundo.
O indivíduo ganha consciência de sua subjetividade essencial.
Entre a realidade e o conhecimento está o sujeito. Este passa
a ser o motivo de suas preocupações.
Os gregos conceberam o conhecimento da realidade como desvelamento. A verdade é
aquilo que se desvela. Conhecer é contemplar a vida como ela é,
deixando-a falar por si mesma. Já para a filosofia moderna o
conhecimento da realidade dá-se como representação. O conhecimento só é
possível como relação entre o sujeito que conhece (ser cognoscente) e o objeto
(ser cognoscível). O sujeito projeta seus modos ou estruturas perceptivas no
objeto para captar suas características e propriedades. É dessa relação
cognitiva que surge o conhecimento. Por esta razão, a noção de sujeito
torna-se fundamental na investigação do conhecimento da realidade.
No século XVII, o filósofo francês René Descartes (1596-1650) vai ser o
primeiro a colocar a pergunta “O que sou?”. Sua resposta: “uma coisa que
pensa”. A certeza do cogito inaugura a noção de sujeito moderno. A
subjetividade torna-se o fundamento do sujeito do conhecimento. Em seu
livro “Discurso do método”, ao duvidar de todo conhecimento que o
precedeu, Descartes procurou a verdade no grande livro do mundo. Seu ponto de
partida era a busca de um axioma que pudesse servir de fundamento a todo
conhecimento, uma verdade primeira indubitável. A partir da
dúvida Descartes chega a uma verdade certa e segura,o eu penso: “cogito ergo sum”. Se duvido, eu penso; se penso,
eu existo. O eu cartesiano é puro pensamento (res cogitans). O pensamento é o
lugar da verdade, é o puro intelecto, pois é por meio dele que adquirimos as
idéias claras e distintas. É esse puro intelecto que se torna o núcleo do
sujeito moderno.
O filósofo Emannuel kant (1724-1804) também contribui para a
construção da noção de sujeito no mundo moderno. Para indagar sobre a natureza
de nossos conhecimento ele colocou a razão num tribunal para poder julgar o que
podemos conhecer e o que não podemos conhecer, traçando os limites de nosso
pensamento. Com isso descobriu que a consciência só lida com fenômenos.
O real não é algo externo ao indivíduo, mas este o produz no
interior de si mesmo. Somos nós que através de certas faculdades apriori
(estabelecidos independentes da experiência) organizamos e damos sentido e
coerência ao real. O conhecimento surge como representação. A razão
seria essa capacidade que o ser humano tem, partindo de princípios apriori,
representar e conhecer o mundo. Em consequência disso, na teoria kantiana a
razão torna-se o núcleo do sujeito moderno.
Outro filósofo importante na construção do sujeito moderno foi o filósofo
das Luzes Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). A diferença em relação a
Descartes e Kant é que ele não coloca a razão como o
núcleo do sujeito, uma vez que a reflexão surge tardiamente no homem. No seu
texto “Discurso sobre
a desigualdade entre os homens” Rousseau afirma que o homem em
estado de natureza é desprovido de razão e reflexão, sendo que estas faculdades
são típicas do estado de sociedade. A reflexão e a razão surgem no ser humano a
partir de uma característica distintiva no ser humano, que é sua
perfectibilidade, isto é, sua faculdade de se aperfeiçoar. É essa capacidade
distintiva e quase ilimitada de desenvolver suas potencialidade que tirou o
homem do estado de natureza e o tornou um ser sociável. Se a reflexão surge
tardiamente no homem, então existiria uma única virtude
natural no ser humano em seu estado de natureza: o sentimento moral de piedade,
entendida como uma “repugnância inata de ver sofrer seu semelhante”. Decorre
daí para Rousseau a ideia de bom selvagem. Foi através da piedade que
surgiram todos os sentimentos sociais como a generosidade, a clemência, a
benquerença e a comiseração. O sujeito é antes de tudo um ser do sentimento e
não da razão. Dessa forma o sentimento moral relaciona-se com a noção de
sujeito no pensamento de Rousseau.
É a partir do mundo moderno que o sujeito ganha certas
capacidades humanas fixas e um sentimento estável de seu próprio eu. Ele
ganha consciência que é uma identidade racional, moral e psicológica. Ele
torna-se um ser soberano, autônomo, fixo, estável, compreendendo
que é um ser que pensa, sente, reflete e age e interage com o
mundo objetivo. É a partir da modernidade que ele ganha consciência de sua vida
interior como transparente a si mesmo, como ator de suas idéias e de seus atos.
Esse contato do homem consigo mesmo só foi possível graças aos movimentos
modernos, como renascimento, protestantismo e iluminismo, que
libertaram a consciência individual das instituições religiosas medievais.
Mas
esta noção de um sujeito fixo, estável, soberano não durou muito. Com
o avanço do
progresso do pensamento e do desenvolvimento técnico e científico, noções
como verdade, justiça, razão, bem, mal, virtude, Deus, foram
relativizados. O progresso do conhecimento colocou em dúvida e levou à
perda de consistência dos valores absolutos da modernidade. Em
conseqüência disso, o sujeito racional e autônomo foi problematizado, uma
vez que se colocava como uma entidade metafísica dada apriori, como algo
absoluto.
O primeiro pensador que começou a descontruir a noção
de sujeito foi Karl Marx (1818-1883) no decorrer do século XIX. Na
concepção do materialismo-histórico, o sujeito é determinado por aquilo
que ele faz, é determinado pelo seu ser social. “A forma como os
indivíduos manifestam a sua vida, reflete muito exatamente aquilo que são. O
que são coincide, portanto, com a sua produção, isto é, tanto com aquilo que
produzem como a forma como produzem. Aquilo que os indivíduos são
depende, portanto, das condições materiais de sua produção” (Marx, 1976, p.19).
É o comportamento material do homem que fomenta suas representações e
pensamento. Marx nos ensinou que, se examinarmos a maneira pelas quais os
homens produzem os bens necessários à vida, é possível compreender as formas de
seu pensamento, tais como sua moral, religião e filosofia. O pensamento, como
núcleo da sujeito, torna-se o reflexo do desenvolvimento material
objetivo da história.
Tal
como Marx, Friedrich Nietzsche (1844-1900) desconstruiu a noção de
sujeito moderno.
Ele se opõe à ideia de origem do sujeito e passa a
compreender este através de uma genealogia, que o concebe emergindo através de
relações de poder, através de um turbilhão de forças que o atinge. O sujeito se
constitui no terreno dos acontecimentos históricos, das contradições, das
relações de força e poder. O conceito de genealogia concebe o sujeito enquanto
ser no mundo, onde o corpo se torna visível e um efeito dos embates de forças.
Dessa forma, o próprio conceito de “eu” fixo e estável perde
sentido, pois o homem é uma espécie cujas qualidades não estão fixadas.
Após Nietzsche, Sigmund Freud (1856-1939) deu um duro
golpe no narcisismo da humanidade. Ele procurou mostrar que o ser humano é
dominado por impulsos cegos e irracionais inconcientes. Não somos seres
autônomos e racionais donos de si mesmo. O Eu (Ego) “não é senhor em sua
própria casa”, o sujeito não é um ser da consciência, mas sim da
inconsciência, não é um ser da razão, mas sim é governado por um
querer cego e irracional, destituído de sentido e finalidade.
Outro
filósofo importante que desconstruiu a noção de sujeito iluminista foi
Michel Foucault (1926-1984). Ele dedicou toda sua vida a criar uma história dos
diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se
sujeitos. Ele retoma a genealogia nietzschiana dedicando-se a estudar a
história das instituições disciplinares que surgiram na modernidade e pensa a
constituição do sujeito a partir de formas de discursos e de relações de
poder. Foucault percebeu em suas pesquisas empíricas que a partir
do século XVII, através do inquérito, ou seja, de certas formas de análise de
problemas jurídicos, judiciários e penais, surgem conhecimentos como a
sociologia, a psicopatologia, a criminologia e a psicanálise. Através
dessas práticas regulares de controle, que se modificaram através da história,
definiram-se tipos de subjetividade, individualidade e técnicas de
esquadrinhamento disciplinar, que tornaram o corpo do indivíduo útil à
produtividade. Isso significa que o sujeito moderno dócil, serviçal,
trabalhador e responsável se constitui através de práticas disciplinares em
instituições de controle como o hospital, a prisão, a fábrica e a
escola.
Os membros da escola de frankfurt também detectaram à dissolução do
indvíduo autônomo do iluminismo. A partir da segunda metade do século dezenove
a humanidade passou a experenciar o advento da técnica e da sociedade de
massas. Adorno e Horkheimer em seu clássico livro “Dialética do Esclarecimento”
mostra-nos de forma contundente as consequências do advento da
técnica. Neste livro eles argumentam que razão do iluminismo
não se realizou enquanto força histórica, mas tornou-se um mito, uma
abstração. Ela transformou-se em um simples instrumento formal, técnico e
operacional, que pode ser usado para todos os fins. Foi através da razão que a
humanidade em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano sucumbiu a um
estado de barbárie e regressão social. A razão formal tornou racionalidade
instrumental, ou seja, tornou-se relação calculada entre meios e
fins. Com o advento dessa racionalidade os indivíduos
se adaptaram à sociedade e ao domínio social de forma espontânea. A produção,
distribuição de mercadorias, o trabalho e os entretenimentos da sociedade
capitalista invadiram à subjetividade do indivíduo autônomo. A racionalidade
instrumental atingiu todos os setores da vida social, tornando os controles
tecnológicos a própria personificação da razão. Eliminou com isso qualquer
tentativa de ruptura. O aparato produtivo e as mercadorias se impuseram
ao sistema social como um todo. Os consumidores, prisioneiros do capital,
prenderam-se agradavelmente aos produtos e às formas de bem estar social. Dessa
forma, o indivíduo autônomo desapareceu. A subjetividade foi tomada pelos
controles tecnológicos.
Nota-se que a ideía
de um sujeito acabado, pronto, estável, como se fosse uma identidade
metafísica deixa de existir. Essa é a grande descoberta daqueles que
desconstruiram a noção de sujeito no mundo moderno. O que se pode inferir,
portanto, é que, se o sujeito não é nada, então ele é, como sugeriu
Locke, uma tabula rasa, é uma folha em branco, cujas impressões do mundo
vão formando o núcleo da subjetividade. Em consequencia disso, só podemos
entender o sujeito em sua relação com a história, através das
circunstâncias que o constitui. O sujeito torna-se o que se é
historicamente, no interior das praticas sociais.
BibliografiaADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de janeiro: Jorge Zarhar, 1985.
DESCARTES, R. Descartes, R. Meditações Metafísicas. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
FREUD, S. O mal estar na civilização. Rio de Janeiro, Imago,Edições Standard, Tomo XXI ,1969.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1989
KANT, I. Crítica da razão pura. São Paulo: Abril cultural, 1983 (Os Pensadores).
MARX, K. e ENGELS,F. A ideologia Alemã. São Paulo, Hucitec,1984.
NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral. Trad. Paulo César Souza. São Paulo, Brasiliense, 1988.