Pensando as Cidades

“e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”
(João, 8:32)

CIDADÃO DO MUNDO REAL: ou assumindo os efeitos colaterais

             Em Cidades Invisíveis (Companhia das Letras, 1975), Ítalo Calvino relata as impressões do navegante Marco Polo no vasto reino do Imperador Kublai Khan. Dentre as propostas de leitura desse relato das 55 cidades com nome de mulher (Dorotéia, Tamara, Ercília, dentre outras), temos a dicotomia entre a realidade e a inventividade destes lugares onde as arquiteturas e os personagens dialogam fora do senso comum. O que é intrigante nos diálogos entre o navegador e o imperador é a falta de clareza sobre o que realmente está sendo dito: o relato literal (a existência física do lugar), o recorte simbólico das representações de cada cidade, ou o retrato puramente ficcional. A intepretação, no caso de Calvino é o revés de qualquer pista para juntar o quebra cabeça da verdade; pois o importante é explorar o que cada representação nos ensina sobre o comportamento humano, sobre o meio ambiente, sobre a exploração do capital, sobre a arquitetura funcional ou estética. O que é realmente importante: a essência ou representação?

“Finalmente, a viagem conduz a cidade de Tamara. Penetra-se por ruas cheias de placas que pendem das paredes. Os olhos não veem coisas mas figuras de coisas que significam outras coisas:  o torquês indica a casa do tira-dentes; o jarro, a taberna; as alabardas, o corpo de guarda; a balança a quitanda. Estátuas e escudos reproduzem imagens de leões delfins torres estrelas: símbolo de alguma coisa – sabe-se lá o que – tem como símbolo um leão ou delfim ou torre ou estrela.(...)O olhar percorre as ruas de como se fossem páginas escritas: a cidade diz tudo o que você deve pensar, faz você repetir o discurso, e enquanto você acredita estar visitando Tamara, não faz nada além de registrar os nomes com os quais ela define a si própria e todas as suas partes. Como é realmente a cidade sob esse carregado invólucro de símbolos, o que contém e o que esconde, ao se sair de Tamara é impossível saber” (pag.9)

             A própria epistemologia do objeto “cidade” é questionável no ponto de vista fragmentário de Calvino, quando conhecimento e verdade mais se amalgamam do que propriamente se definem. Esta episteme (conhecimento) daquilo que é verdadeiro foi apresentado de forma sistemática, como método, ainda na Grécia Antiga com Platão (Atenas 428/427 – Atenas, 348/347 A.C) em sua Teoria das Ideias. Aqui, Platão discorre que o homem está em permanente contato com duas realidades: a inteligível (imutável encerrando-se em si mesma) e a sensível (na qual os sentidos lançam um véu sobre aquilo que é inteligível fazendo-nos perceber apenas o reflexo do real). 

             A discussão sobre o “real” o “homem” e a “sociedade” são objetos de vários pensadores ao longo da História nos campos da sociologia, antropologia e psicanálise. Mas foi o sociólogo francês contemporâneo Jean Baudrillard  (Reims, 27 de julho de 1929Paris, 6 de março de 2007)que lançou luzes mais provocativas sobre o assunto. É ele que vai tratar conceitos como “realidade virtual”, “simulacro” e “hiper-real” na dialética entre o real e o virtual.  Influenciado por pensadores da desconstrução com Friedrich Nietzsche e Antonin Artoud,  Baudrillard retoma as questões do filósofo ateniense seguindo os vetores da industrialização moderna, as relações de consumo e fenômeno da tecnocracia.

             O ambiente das cidades como centros dinâmicos de transformação são cenários perfeitos para observação da desumanização contemporânea.  Multidões anônimas caminhando a passos largos pelas avenidas, o caos dos engarrafamentos, a lotação dos shoppings centers, tecnologias como wi-fi e o bluetooth que encurtam distancias mas eliminam o contato tátil, o aperto de mão, o abraço. A cidade – criatura –  torna-se o personagem.  O cinema nos mostra esta cidade-personagem em: “Metrópolis (Fritz Lang, 1927)”; “Blade Runner (Ridley Scott, 1982)”, “Brazil, O Filme (Terry Gillian, 1985)”; “Código 46 (Michael Winterbotton, 2003)”, “Truman Show (Peter Weir, 1998)”,  “A Origem (Christopher Nolan, 2010)”; para citar alguns exemplos. Porém dentre o filmes contemporâneos que entraram mais no mérito sobre o quão os sentidos nos distanciam da “verdade”, do mundo além das projeções que poderíamos alcançar é a película “Matrix (Andy e Larry Wachowski, 1999)”.  Indo direto ao ponto, a história propõe ao protagonista, Neo,  uma escolha: ao tomar a pílula azul o personagem permanece em sua realidade, a nossa realidade dominada pelos sentidos; se ingerir a pílula vermelha pode-se “acordar” e atingir a verdade sobre a existência do mundo, da humanidade e a sua própria. O filme desvenda em um tomar de pílulas o que humanidade quebra a cabeça há séculos para resolver. Assim como um LSD abrindo as portas da percepção ou clonazepam, hoje, panaceia para todos os males. De fato, o roteiro se desenrola a partir da ingestão da pílula vermelha escolhida pelo protagonista; a partir daí, tornando-se líder de uma milícia de resistência da pós-realidade.  Não é o objetivo do filme, é claro, traçar uma odisseia ou uma nova tragédia. Mas uma leitura mais palatável para reflexão.
O fato é que resolver a questão sobre o real e o virtual (o simulacro de Baudrillard) não é uma tarefa simples. O próprio mito da caverna de Platão, onde os seres humanos enxergam apenas as sombras refletidas nas paredes internas da caverna e tangibilizam estas como realidade, foi uma das soluções para as proposições divergentes entre Heráclito (Éfeso, 540 a.C. - 470 a.C.)e Parmênides (Eleia, 530 a.C. - 460 a.C.).  O debate é deveras secular.
            
             Dentro de uma realidade urbana, caótica, veloz, competitiva; qual seria o nosso cenário pela pílula vermelha? Um lugar de natureza intocável com plantas e frutos ao bel prazer, uma negação ao trabalho braçal ou intelectual, um Éden para um eterno estado de felicidade? Uma cidade de contornos sinuosos em sua arquitetura, silenciosos veículos voadores, jardins e parques para o desfrute da música, do teatro, da pintura...Ou um céu de um eterno branco, onde não exista a matéria, apenas as consciências-almas como estrelas  tateando-se por azul sem fim. Qual seria esta “verdade” que liberta, como disse o profeta Jesus? De onde viriam as luzes além das sombras da caverna de Platão?
            
             E se a escolha fosse a pílula azul? Viver num mundo de mentiras, opressão, sexualizante, violento, onde ser parte da massa é um destino demasiado a cruel. Este mundo onde o ser humano tornou-se um câncer para a teia da vida, destruindo o próprio planeta onde vive. Eternamente assombrados pelos dilemas que nos atormentam: Deus existe? De onde viemos? Para onde vamos? Tenho dinheiro para a conta de luz do mês que vem? Este mundo que nos sufoca concomitantemente é o mesmo que traz o sorriso de nossos filhos quando aprendem a andar de bicicleta, que nos faz chorar quando damos flores no dia das mães, que traz  a alegria de um churrasco com nossos melhores amigos,  quando entregamos nossos lábios ao primeiro beijo, quando finalmente fazemos amor com a parceira desejada.

              A realidade da pílula vermelha, nos bastidores do palco armado pela Matrix, é uma escuridão azulada por tubos, condutores , casulos que mantém humanos em uma animação suspensa. Uma espécie de Hades tecnológico onde não há noção de bem, de mal, de moralidade. Onde haveria luz, onde haveria um Deus, há lampejos estroboscópios entre os espaços abismais. Uma cidade que é o produto que o ser humano criou, que se recriou e dominou o criador.

             Fora da ficção, como seria a sua própria verdade de cidade, as relações de trabalho, o respeito ao meio ambiente, o respeito ao próximo, o acesso à educação ao saneamento, à água potável?  Como seria sua utopia tangível? Como seria sua relação com tempo-espaço? A lição que tiramos desta reflexão é que qualquer uma das escolhas nos levará a um nível de responsabilidade onde teremos de ser, de qualquer forma, agentes da mudança. Um Neo rebelde do cosmo-real! De que adianta saber a verdade e ficar passivo diante dela? E ainda de que adianta estar no mundo em que vivemos sendo irresponsáveis e egoístas? O estado de anonimato na massa urbana nos torna anestesiados.  Baudrillard, comenta com precisão o efeito colateral da pílula azul: “as massas absorvem toda a eletricidade do social e do político e as neutralizam, sem retorno. Não são boas condutoras do político, nem boas condutoras do social, nem boas condutoras no sentido geral...Elas são a inércia, a força da inércia, a força do neutro”.

              Escolher adentrar aos subterrâneos da Tamara de Calvino é estar consciente dos efeitos colaterais da pílula vermelha. Nas Cidades Reais ou Virtuais, o desafio é assumir a cidadania deste cenário e ser um agente transformador. Na tangibilidade do mundo das Idéias, de um contato com a “verdade”, se isso for alcançável,  será impossível sair impune; será impossível não sair do espanto para ação.








BIBLIOGRAFIA:

BAUDRILLARD, Jean – À Sombra das Maiorias Silenciosas. São Paulo: Brasiliense, 1985
_______________. – Simulacros e Simulação. São Paulo: Livros do Brasil, 1993
BARCELOS, Jorge - Introdução ao pensamento de Jean Baudrillard.
www.overmundo.com.br/download_banco/baudrillard
CALVINO, Ítalo – Cidades Invisíveis. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1975
SIQUEIRA, Holgonsi Soares Gonçalves – “JEAN BAUDRILLARD:  importância e contribuições pós-modernas” - Caderno MIX - Idéias - Jornal "Diário de Santa Maria - Edição de 31/03 - 01/04/2007 – reproduzido em http://www.angelfire.com/sk/holgonsi/baudrillard.html
WASHOWSKI, Andy et Larry – MATRIX – Warner Bros., 1999
WIKIPEDIA: Platão :b http://pt.wikipedia.org/wiki/Plat%C3%A30

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