Entrevista com a cineasta e produtora Helena Martinho da Rocha.

Rio de Janeiro, praia do Leme, restaurante Fiorentina. Entre uma garfada e outra de salmão ao molho de alcaparras a cineasta Helena Martinho da Rocha me concedeu esta entrevista numa ensolarada Quarta-Feira de cinzas. De uma simpatia e generosidade ímpares, a diretora de "O Bispo do Rosário"(1993)- docudrama sobre o artista plástico Arthur Bispo do Rosário e "Benguelê" (2007)- sobre a matriz negra na música popular brasileira-, expressou sua paixão pela Psicanálise (seu sustento), suas impressões sobre a cultura negra, a difusão de obras de arte sob a sombra da Lei de Direitos Autorais, racismo e Clementina de Jesus.


Umberto Mauro - Helena você fez mestrado em Psicanálise e Cinema ao mesmo tempo, como equilibrar estas áreas tão díspares ... Ou eu estou enganado, não são tão distintas assim?

Helena Martinho da Rocha - (risos) É, realmente eu fiz tudo ao mesmo tempo. Em 1978 eu fiz meu mestrado em Psicologia na Sorbonne. Fiz direção de cinema em 1973, no Conservatoire Libre de Cinema Français ... Sabe eu me apaixonei pela psicologia ainda menina, com 16 anos quando, no colégio, ouvi falar em Freud, em psicologia...A psicologia foi minha liberdade...como se diz...(pausa)

Umberto Mauro - Sua abolição...

Helena Martinho da Rocha - É...talvez...uma abolição...financeira...foi aí que eu consegui sair da casa de meus pais...me formar... e hoje é meu sustento. Quer coisa melhor...me ajudar e ajudar as pessoas? Eu trabalhei Centre National de Recherche Scientifique, na França. Pude trabalhar com crianças um tempo... Enfim... tive muita sorte.


UM - Helena seus últimos trabalhos em cinema tem como protagonistas personagens negros. Negros importantes na produção de cultura contemporânea. Isso foi pensado de alguma forma ou aconteceu espontaneamente?


HMR - Eu acho que são duas pessoas muito importantes e eu me apaixonei pelas duas. Bispo, pela história dele que eu acho incrível. Um homem esquizofrênico que teve um surto psicótico. Foi para no Hospital da Praia Vermelha. Da Praia Vermelha foi para na Colônia Juliano Moreira onde viveu 50 anos. E é um artista que representa a cultura brasileira, que representa o imaginário brasileiro. É um artista muito importante que ainda não foi valorizado o suficiente. Já participou da Bienal de Veneza, já teve exposição dele no Museu du Jeu de Paume, já teve exposição dele em Estocolmo, na Suécia.

UM – E tem um museu...


HMR – Tem...tem um museu. Sua obra já viajou muito pelo mundo... (pausa) E o acho extraordinário...Há alguns anos eu estava em um Congresso da Sociedade de Psicanálise quando uma amiga psiquiatra me questionou “Helena, você que é cineasta, não gostaria de fazer um filme sobre o Bispo do Rosário?” “Bom, então deixa eu ver que é Bispo do Rosário”. Na mesma época estava tendo uma exposição da obra do Bispo no Parque Lage, o curador era o Frederico Morais (Jornalista e crítico de arte). Aí, o que aconteceu...tinha um jornalzinho...que o Frederico Morais tinha organizado e nele tinha um texto muito bonito sobre a relação do Bispo com a Rosângela que era estagiária da Colônia e falava sobre a questão do amor...Ele (o Bispo) se apaixonou por ela.


UM – Que no seu filme quem faz é a Christiane Torloni...


HMR – É a Christiane Torloni...
(Faz uma pausa para pedir uma colher para o molho de alcaparras que o garçom displicentemente esqueceu)

HMR – Então quando fui chamada... Olha eu adoro essa coisa de ser chamada...”Ser chamada para fazer”. Agora mesmo fui chamada para dirigir um curta de um roteiro que não é meu. Eu adoro ser chamada para fazer alguma coisa, Umberto. E aí quando foi ler este texto do Frederico Morais que falava sobre a relação entre a Rosângela e ele. Eu chamei o Miguel que trabalha comigo. Disse bom, a partir deste texto a gente pode fazer um filme. Vamos fazer um docudrama: um docudrama mistura ficção com documentário. Então ao acho o seguinte... Será que os artistas negros brasileiros tem muita coisa a dizer ao Brasil e que ainda não foram valorizados o suficiente? Tem negros aí que a gente nem conhece... Tem uns que a gente conhece: Gilberto Gil, Milton Nascimento – que é maravilhoso -, tem Martinho da Vila, tem o Antônio Pitanga...Mas quantos outros negros artistas que ainda não foram descobertos? A Clementina (de Jesus) foi descoberta com sessenta e poucos anos...


UM – Sessenta e três!


HMR – Né?...(risos)


UM – É a gente não tem ideia por que confronta o que ela diz com os documentos existentes...


HMR – Então é o seguinte...Quando a gente vai fazer filme, quando a gente se apaixona pelas histórias das pessoas e pelas ideias a gente não se preocupa se é branco ou se é preto, entendeu? Se aquelas pessoas são interessantes não importa a cor delas. Não importa! Por acaso eu fiz filmes sobre dois negros.


UM – Por que eu te pergunto isso. Recentemente, dos anos 80 em diante, vimos uma produção muito forte de artistas negros ou produções sobre artistas negros... Então há uma conscientização da cultura negra que não se via em décadas anteriores.


HMR – Nos meus filmes não é uma questão de cor. Eu acho o seguinte... Concordo com você que há um racismo no Brasil. Há um preconceito... Não é o mesmo dos EUA, lá é muito mais radical, mas...Eu conheci a Zezé Motta...ela fez uma época um catálogo de atores negros...Ainda é difícil para negritude...Agora você vê (pausa). Ainda não temos um presidente negro como tem o Obama nos EUA. Os negros estão conseguindo os espaços oficiais há muito pouco tempo. Tem uma dificuldade do próprio brasileiro em ver que a nossa sociedade é toda misturada. Ela não é só branca...Ela é preta, branca de um monte de cor...Tá na hora de se reconhecer isso...


UM – Tá na hora de se reconhecer inclusive que o negro também não é 100%. Nós somos mestiços e teríamos que ter orgulho da nossa mestiçagem, da nossa brasilidade, da nossa mistura que é tão bonita...


HMR – E os estrangeiros valorizam isso.


UM – Mesmo com o crescimento do produto cultural negro no Brasil ainda se torce o nariz para esta negritude?


HMR – Sim. Pelo seguinte: Quantos ministros são negros? Quantos professores na universidade são negros? Então... ainda existe! Então o negro afrodescendente ainda tem uma dificuldade muito grande de sair de uma classe social...É uma questão econômica! Então temos muitas conquistas a serem feitas. Por exemplo: O Martinho da Vila é o primeiro sambista brasileiro de sua geração que vive bem. Então o Cartola? Como Cartola vivia...Nelson Sargento...Carlos Cachaça?


UM – O Zicartola durou dois anos...Seria até uma oportunidade além da música de crescimento financeiro, não é?


HMR – É. Agora você vê...História do Cartola é muito linda...chegou um momento que ele foi lavador de carros...Você viu isso no filme (Benguelê)?


UM – É verdade. O Roberto Moura inclusive fala da descoberta do Cartola em uma repartição pública...Mas o Sérgio Porto reivindica a descoberta do Cartola...


HMR – O Stanislaw Ponte Preta (pseudônimo de Sérgio Porto) é mais famoso que o Roberto Moura...Ficou a versão do Stanislaw...que é mais famoso que o Roberto...As pessoas se valorizam muito descobrindo tal e tal pessoa...Era um cara muito articulado...
Agora a Clementina de Jesus, não se tem dúvida (risos) que foi o Hermínio Bello de Carvalho.


UM – Me diz uma coisa...Por falar novamente em Clementina. O Brasil, dada a sua construção Histórica, não preserva seus mitos, mitos diversos, nas artes, na política, enfim...Qual a sua percepção sobre o fazimento da memória no Brasil?


HMR – O Brasil é um país que vive o tempo todo no presente. É um país que a memória é pouco valorizada. Existe uma questão muito séria com a memória. Eu descobri isso quando foi pra França e comecei a perceber como Maria Antonieta, Napoleão, a história da Revolução Francesa... Como ela é valorizada o tempo todo!


UM – As pessoas dialogam sensorialmente com a História o tempo todo...


HMR – Isso mesmo... Exemplo... O Charles Aznavour... deve ter os seus oitenta e cinco anos hoje. Ainda é supervalorizado. É e um armênio que foi morar na França! Então nós temos muito dificuldade em reconhecer nosso patrimônio Histórico. Olha quantas coisas já foram destruídas. A História não é importante no Brasil e a História é fundamental. A cultura...(pausa). Não sei se foi ontem que eu escutei na televisão...a gente é a História da gente pessoal, a gente é o presente e é o futuro. E futuro é o nosso projeto. Nosso passado é nossa identidade. É o presente é o momento de agora. O passado é essencial...A cultura é essencial...Se você entende o que foi a Grécia, a Idade Média, o Renascimento você vai entender o que está acontecendo hoje no mundo. É um processo...
Ontem por exemplo fui ver o filme da Margareth Thatcher, com a Maryl Streep (A Dama de Ferro, Phyllida Lloyd, 2011). Eu fui cheia de preconceitos, achei que o filme era horrível...


UM – É por que a crítica realmente detonou...não a atuação da Maryl Streep (risos). A crítica argentina principalmente.


HMR – A critica detonou...né?!(risos) Mas o filme é maravilhoso! É história!


UM – Mudando de assunto. Eu gostaria muito de saber sua opinião sobre uma questão polêmica. A Lei de Direitos Autorais de 1998. A LDA é um estorvo para a difusão da cultura popular no Brasil?


HMR – Eu acho que sim. Veja bem, eu te contei a estória da filha da Romy Schneider (1938-1982 – atriz austríaca famosa pelos filmes Sissi e Boccacio ‘70) que não queria que eu fizesse um filme sobre a sua mãe; mas, não poderia fazer nada para me impedir. Na europa, as famílias não tem direito sobre a obra coletiva do artista, o que não acontece no Brasil. Aqui, os herdeiros são um estorvo mesmo!


UM – Engraçado que temos uns fatos contraditórios como a questão do disco Racional do Tim Maia que em vida ele negava a obra, por ter sido criada como um “planfeto religioso”. Porém a família permitiu a remasterização do disco...


HMR – Dinheiro! Não tenho dúvida que rolou muito dinheiro na estória...Agora temos em cartaz um espetáculo sobre o Tim Maia (Tim Maia, Vale Tudo o musical de João Fonseca) e sei que o Mauro Lima está iniciando um filme sobre o cantor. Existem questões que vão além da simples difusão cultural e social da arte no Brasil...


UM – No seu filme há imagens de Clementina de Jesus, a família foi problemática neste processo?


HMR – Não. Filmei Clementina em vida. Era adorava ser filmada e ser divulgada, cantar...Sempre tive um bom relacionamento com a família na época. Apesar de o filme ter sido premiado internacionalmente ainda não lucrei com filme. Não por isso...o filme nem tinha essa finalidade...mas estou pagando os direitos autorais necessários.


UM – Como você percebe o silêncio de Clementina de Jesus nas mídias de uma forma geral?


HMR – Vamos lá...Clementina de Jesus foi uma artista fundamental de tempo e deixou um legado importantíssimo, sobretudo para cultura popular. Influenciou artistas como João Bosco e Milton Nascimento. A sua forma de cantar, de se apresentar, foi de um ineditismo estético que causou furor muito grande. O choque provocado por Hermínio Bello de Carvalho (compositor, escritor e produtor cultural que levou Clementina para showbiz) foi lindo e necessário num cenário dominado pela bossa e o Yê yê yê. Clementina transmite uma verdade absoluta e crua. Sua música leva a um tipo de reflexão...Você tem que entender que mídia é dominada por um grupo pequeno e que não é interessante divulgar este tipo de obra.

UM – O que representou para você Clementina de Jesus?


HMR – Acima de tudo um exemplo...Um exemplo de artista, um exemplo de ser humano. Não é à toa que as pessoas a chamavam de Rainha, de mãe. Ela era de uma doçura...um amor, sabe? Foi realmente um privilégio tê-la conhecido.


Antes de pedirmos a conta e do sol dar lugar às nuvens carregadas daquele fim de tarde, relembramos uns sambas de Clementina. Ela me pediu para fechar os olhos. Ao abri-los, vi na frente o vinil “Clementina, Cadê Você?” de 1970. “É emprestado, hein!” – informou sorrindo. Oxalá o dia em que todos terão disponíveis, em mãos, nos ouvidos e no olhar a obra da velha Rainha Ginga, nossa Quelé, nossa Clementina.



Umberto Mauro, para o blog Umberto! Agora Já Era, Fevereiro de 2012.

2 comentários:

  1. Simplicidade: ela fala claro, fácil. absorva esse jeito à você. E deixa o garçom de lado, porra!!! O pobre infeliz esqueceu de por um garfo no prato, não de um ponto na sutura!!! Tô aguardando seu telefonema para trabalhar, tô muito curioso pelo filme!!! E muitíssimo orgulhoso de ti!!! Meu irmão!!!

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  2. Obrigado, mano. Estamos trabalhando duro para melhor serví-los.

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