A MAÇÃ

ABRA A BOCA, FECHE OS OLHOS E DÊ UMA MORDIDA!



Analisar “A Maçã” (MK2 Productions, 1998) da ainda jovem diretora iraniana Samira Makhmalbaf sob uma ótica apenas moral, num contexto extremante opressor, é olhar apenas a superfície do espelho d’água. A produção no tom docu-drama é uma ode à liberdade com todos os benefícios e riscos deste ideal pungente no coração dos homens. Quando mergulhamos profundamente além de nossos rostos, além da relação opressor/oprimido, na qual podemos nos prestar em algum momento de nossas vidas, o submerso, o invisível, o mundo das sombras, pode ser habitat da suficiência e do conforto.

Talvez a melhor manobra estética de Makhmalbaf seja demonstrar como nos atrai a idéia angelical do ser humano puro, imaculado, desprovido das maldades mundanas, repleto de ternura (onde o ato mais bestial é roubar picolés de um moleque ambulante) na clausura da ignorância. A “maçã” (fruta), em uma óbvia alegoria ao arquétipo edênico, traz a liberdade, o conhecimento, o gosto do quente e do gelado. Os pais tiranos, desprovidos de inteligência, atados ao “livro” da religião, querem proteger sua prole do mundo dos infiéis e do ambiente hostil e beligerante do Teerã. A manobra estética está em não retratar a escuridão insalubre da casa suburbana, as crianças em inanição profunda, o mau cheiro de seus corpos sem banho ou alguma violência doméstica -  não há jogos sensacionalistas – retrata-se o sorriso quase permanente das gêmeas e a lágrima contida nas justificativas do pai. Existe uma relação de amor familiar entre os quatro personagens – uma suficiência afetiva – que é demonstrada ao longo da película em pequenas doses. Emerge o sentimento de pena com as crianças quando vemos as conseqüências da crueldade: as deficiências na oralidade, as limitações motoras. Mas a diretora coloca o espectador em um papel desconfortável. A câmera documental é como a janela dos vizinhos que pendem entre o acusatório e a indiferença. É nesse limiar que reside a pena. Você bancaria tirar os passarinhos do conforto do ninho para ensiná-los a voar?   

Não há dúvida do drama humano de Massoumeh e Zahra. Mas o aprofundamento nas motivações do pai e a expectativa de uma talvez perda da guarda das crianças leva este drama a assumir outros contornos. A funcionária do Departamento do Bem-Estar é cobrada pelos vizinhos no momento da curta peregrinação à procura de um serrote (cego): “Você leva e traz as crianças...o que vai fazer com elas a final de contas?”. Assuma as responsabilidades! A funcionária do serviço social é a serpente divina invadindo o paraíso infernal: portadora da maçã, o fruto do bem e do mal, do conhecimento da vida fora da “caverna”. O magnífico do filme é que as gêmeas não são tuteladas pelo Estado nas suas desventuras diárias, no meio da rua. Mas são outras crianças que as pegam pela mão e as ciceronam pelo mundo. Quem assume o risco de receber pancadas na cabeça, ensinar-lhes amarelinha, de tomarem pito do antipático mercador são justamente outras crianças. E, inclusive, a linguagem do consumo e do vil metal.

O processo de aprendizagem é relativamente rápido e assim nos dá alguma pista de que tal isolamento poderia ser relativo. Poderia haver algum estímulo na prisão imposta pelo pai? Poderia uma educação religiosa, mesmo fora do templo, trazer alguma informação sobre o mundo? A inteligência humana explode ao menor estopim dos estímulos? Podemos discutir inclusive categorizar estágios piagetianos e pousar lentes epistemológicas nas personagens. Vai aí a discussão à priori do filme. Podemos partir por este viés. Mas não podemos negar a discussão filosófica que a diretora nos impõe: O que fazer com liberdade? Como lidar com a liberdade? O conhecimento é a verdade que liberta? Mais do que a alegoria da “maçã” – de obtê-la em mãos – há uma responsabilidade após mordê-la: a certeza de que a boca, a partir deste momento, provará da douçura e do amargor da vida.











Ficha Técnica:



Título: A Maçã (Orginal: The Sib)

Direção: Samira Makhmalbaf

Ano: 1998

Estilo: Documentário Dramático

Producão: MK2 Productions ; Irã, Cor