Em 1986 sentimentos
confusos apertavam os corações dos brasileiros. Uma esperança produzida pela
abertura política, depois de duas décadas de ditadura militar e, ao mesmo
tempo, um resquício de luto pela morte de Tancredo Neves. Sarney tentava
capitalizar a opinião pública a todo preço de matérias positivas nos jornais,
pois, sua ascensão à presidência, foi um golpe do destino, e não pelo tão
sonhado sufrágio democrático. Era o ano de lançamento do Plano Cruzado e às
donas de casa fora imputada a missão de serem “fiscais do Sarney” contra a
remarcação abusiva dos preços. Dentre as questões complexas da política e da
economia nacional, apenas uma coisa interessa a minha mãe: minha aprovação para
o Colégio Pedro II.
Foi
um investimento milionário para uma diretora adjunta de uma escola municipal
nos confins do subúrbio do Rio de Janeiro. Produção “hollyudiana”! Cursinho,
professor particular, uma tirânica rotina de apostilas, toque de recolher e
finais de semana com os cotovelos na escrivaninha de um quarto
arquitetonicamente decorado para estudo. Aos domingos, eu não podia nem
assistir aos “Trapalhões”; nove da noite já era tarde. Minha mãe se sentia a
treinadora de um atleta olímpico soviético. Era o investimento de uma vida... No
final tudo valeu à pena. Fui aprovado. E quando minha mãe me vestiu pela
primeira vez o uniforme, foi como o ritual de enfardamento de um alferes. Me
senti um protagonista de conto machadiano. Agora eu era o aluno do Colégio
Pedro II. “Sabe o Umberto...aquele menino do 301” – comentavam os condôminos –
“passou para o Pedro II”. “Também com a mãe que tem...” – retrucavam alguns no
canto da boca. Eu estava com nove anos. Naquela idade onde você ainda é filho
da fulana-de-tal, educado pela fulana-de-tal, vestido pela fulana-de-tal, e é
lhe negada a autonomia até de escolher suas cuecas. Sei que muitos chegam aos
trinta ainda assim...
Enfim,
eu lá minúsculo, magrinho que só, naquele colégio enorme de arquitetura moderna
– base sobre pilotis – totalmente oprimido pelas circunstâncias que envolvem
uma mudança de colégio aos nove anos de idade. Não tive trote. Nem sempre as
coisas acontecem como nos filmes americanos onde lhe imprensam na porta do
armário. Lá nem tinha armário. Mas era um detalhe na imensa infraestrutura que
o colégio oferecia. Eram quatro unidades (Centro, Tijuca, São Cristóvão e
Engenho Novo). Estudei em São Cristóvão que era, e ainda é, a sede
administrativa do Colégio. Era a Disney dos colégios públicos: piscina
olímpica, uma quadra coberta, uma quadra poliesportiva, pista de atletismo,
equipamentos de ginástica, um pátio gigantesco e corredores labirínticos de
salas de aula. Era muita coisa para alguém que tinha feito a quarta série na
escola municipal Maria Izabel Bivar, que não chegavam nem a ser Parque Shangay
dos colégios da rede municipal. E eu lá sabia que colégio público tinha
piscina... Mas tarde, os Brizolões do Estado iam trazer esta infraestrutura
aquática para os rincões suburbanos. Mas logo, logo, os únicos a usufruir
daquele luxo educacional eram os faceiros e pululantes insetos das várias
procedências.
O
CPII era um colégio de elite, com o peso sesquicentenário em sua história;
criado, por decreto, pelo próprio Imperador, em 1837. Mas, ao contrário de seu
público original no século XIX - a aristocracia da corte -, o colégio tinha o
corpo discente oriundo de várias procedências, inclusive de favelas dos
arredores da Zona da Leopoldina. Era realmente um exercício democrático. Filhos
da elite da Zona Sul – aqueles cujos pais não podiam bancar um São Bento –
dividiam as mesmas carteiras rabiscadas com os suburbanos. Uma época em que
ostentar aquele emblema cinza era um orgulho por si só, independente da classe
social. E essa era uma das maiores lições do colégio: além da sua grade
curricular de excelência, além das aulas de xadrez e de canto orfeônico; aprender
a lidar com o outro era o grande triunfo do velho CPII.
Em
sala de aula levantava-se na entrada do professor. Era um ritual de respeito
herdado das escolas religiosas. O professor podia ser “maneiro”, “carrasco”,
“gente fina”; sendo de qualquer alcunha, o respeito pelo docente era
generalizado. Me lembro que fiz a peraltice de caricaturar uma professora de
francês – que não era nem “gente fina” nem “maneira” – no quadro negro. A
desenhei toscamente com um corpo de mosca e com uns óculos enormes ao estilo do
Bono do U2. Fui para coordenação. Recebi uma advertência por escrito. Fui
tratado como herege por semanas. Planejei vingança. Desisti. Hoje em dia,
professores maneiros, gente fina e carrascos são ameaçados com armas de fogo.
Planejam vingança. Mas, acham melhor desistir.
Ser
gente fina e ser maneiro podia traduzir um professor dinâmico e eficaz em sua
didática, mas de longe um leviano nas aprovações. A partir da sétima série,
criei uma rotina de recuperações nas matérias exatas para desespero completo da
minha mãe. Ah, como as mães sofrem... Em ensolarados fevereiros via da janela do
meu quarto as crianças brincando no condomínio. Elas também me fitavam. “Nossa
como ele gosta de estudar...”. Me deram uma falsa fama de CDF que carreguei por
anos. De fato gosto de ler, mas detesto equações e símbolos químicos. Mas em
fevereiro esta eu lá, religiosamente. Vítima do carrasco ou justiçado pelo “gente
fina” que não tinha a menor obrigação de me aprovar. Décadas mais tarde, entra
em pauta a aprovação automática como estratégia para alavancar os indicadores
da educação no Brasil.
O
CPII foi minha segunda casa por uns sete anos. Lá aprendi que amar a pátria e
respeitar o próximo era tão fundamental como comer ou escovar os dentes. No
grêmio estudantil, nos juntamos aos professores em sua primeira greve, fizemos
passeata para gratuidade de passagem de ônibus, e engrossamos às passeatas pelo
impeachment do ex-presidente Collor. Aprendi a beber, recusei o cigarro, nunca
usurpei nada de ninguém a não ser alguma colegial incauta e desiludida. Nos
meus últimos dias de colégio, já não me impressionavam as grossas colunas do
grande CPII. O que era o colégio diante da vida? Mas o que seria minha vida se
não fosse tudo que eu aprendi naquelas salas e naqueles corredores. Hoje sou
casado, tenho meus filhos e trabalho como milhões de outros brasileiros para
pagar as contas do final do mês. Se aquela concentração olímpica soviética
serviu para alguma coisa? Poxa, como serviu! Hoje posso olhar para traz e dizer:
“Que bom, mãe, certamente eu tive uma excelente assessoria”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário