O Mundo de Sofia (Minissérie TV)

O OUTRO NOS DÁ SIGNIFICADO


De quando em vez o mercado editorial lança produtos “bolas da vez” que, com a penetração em grandes livrarias e uma divulgação adequada, são destinados ao sucesso blockbuster. Não sei se O Mundo de Sofia de Jostein Gaarder, lançado em 1991 (no Brasil, 1995, Companhia das Letras), teve o planejamento que lhe garantisse, em um prazo relativamente curto, um venda estrondosa em escala mundial – foi traduzido em 55 línguas e vendeu mais de vinte milhões de cópias. Sobretudo por ser um livro de filosofia. É fato que a escrita do autor de O Dia do Coringa  (1990) e O Livro das Religiões (1989) é dinâmica, atraente e palatável. Confesso que sou um dos fãs do livro. Mas a minissérie homônima produzida para televisão norueguesa em 2000 ficou realmente muito aquém da obra original.
Vamos com calma. Contar a história da Filosofia de Sócrates à Sartre não é uma tarefa fácil. Apenas um filósofo que fosse já daria um bom enredo. Gaarder constrói a trama com uma protagonista adolescente, vivendo sob a ausência paterna, em um subúrbio de casas coladas e lindos arbustos entrecortando as ruas. O livro foi escrito para este público adolescente que quando escuta a palavra “filosofia”, no mínimo, torce o nariz. O livro descreve a história da humanidade fazendo metáforas temporais: a idade média começa às duas da madrugada, por exemplo, e ainda dividindo a história em infância, adolescência e fase “adulta”. Há um simbolismo, uma escolha estética, que faz o calhamaço de 560 páginas ser consumido como um grande lanche do Mc Donald’s. Porém a produção de TV não teve o mesmo mérito.
O filme tem problemas sérios de fotografia, os cortes são mal processados, os closes e os travellings são de uma infantilidade desnecessária. A apesar de transfigurar bem a questão metalinguística do texto de Gaarder – obra dentro da obra – o filme peca em tentar ser literal demais e cai nas armadilhas típicas quando transfigura-se de uma linguagem estética para outra. O vizinho, proprietário de uma pequena livraria local, tem TOC. E daí? Os amigos de Sofia se beijam no cinema, ela nem tenta, nem é “tentada”, mas é uma adolescente. É inteligente, mas não é nerd. O autor não “maltrata” a protagonista no livro. O filme é escuro no ambiente urbano e claro na floresta à margem do bairro. Será que convidaram pelo menos a Liv Ullmann para dirigir? Ela certamente daria melhor acabamento.
Assim como no livro a minissérie é um convite à reflexão. Isto dá uma excelente penetração, não restringindo o foco ao público adolescente. É um produto que, se possível, deve ser visto com os pais, um tio, uma avô, enfim, em família. A questão do ensinamento dos adultos para os mais jovens é colocada com carinho: no excelente relacionamento com a mãe, o professor/cicerone Knox, o pai soldado intelectual da ONU. O filme contrasta propositalmente àqueles personagens com o professor inapto e grosseiro da escola que obviamente representa a mera transmissão de informação sem a menor reflexão. E este “pegar na mão”, a jornada peripatética surrealista de Sofia e Knox, mostra o tamanho da responsabilidade de ensinar e o quanto mostrar o caminho – assim com Santo Agostinho realizou – é mais importante do que conduzir.
Em plena era da informação, onde os computadores fazem parte do nosso cotidiano, a carta substitui o e-mail. A carta remete a uma intimidade, ao manuscrito tremulando sentimentos no papel, ao direcionamento específico, à confiança no relacionamento. A carta respalda o feedback, e aguça a leitura. Não é deletada antes de ser lida e nem é tachada como spam e enviada para “lixeira” automaticamente. Na era dos seguidores e dos milhões de amigos virtuais a minissérie mostra relações entre vizinhos, relações entre as melhores amigas, a relação aluno-professor. A valoração da ágape.
Dentro das várias reflexões sobre a existência e o papel do ser humano no mundo, o filme nos mostra o quanto o outro nos dá significado e a impossibilidade de vivermos isolados. A humanidade é gregária por natureza e paradoxalmente à torna não-natural. Pela mão do outro, pelo olhar do outro, nos tornamos vivos e nos mantemos eternos. Os intelectuais estão vivos em suas ideias. O final do filme é uma grande festa à imortalidade. Assim como no livro, uma ode à vida além da carne-osso, além do tempo-espaço.  O filme poderia ter realizado com mais cuidado a relação entre a arte e a vida. Mas deixa seu recado: A celebração da existência no mundo será sempre um aviltamento à mediocridade.